quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

poço

és o poço que criaste
onde simplesmente nadas
nadas para não te afogares
nadas sem ter para onde ir
nadas para te manteres à tona
na esperança de que um dia
o poço seque

sábado, 24 de novembro de 2012

chorão

há quem diga que és triste
és mal amado
mal compreendido
julgam-te murcho
sem vida
acredito que és murcho
pelo peso dos bons momentos
que a tua sombra proporciona

não dás flor
não dás fruta
não faz mal
de ti
colhem-se aquelas memórias
de boas tardes passadas
a brincar
ou a arrulhar
com aquela menina

à tua sombra
imaginaram-se universos
criaram-se personagens
inventaram-se aviões
que te sobrevoaram
e depois partiram
para outros mundos
sem sair
da tua sombra primeva

começas a secar
formigas e outros invadiram-te
consomem-te do interior
se um dia secares por completo
até nada em ti estar verde
vou olhar-te com olhos de criança
e dizer
"é uma pena"
de mãos nos bolsos
irei embora
cheio do que de ti colhi

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

droga

não soubesse eu que estavas sobre o efeito de drogas, diria que a génese da tua existência a vês entediante, e buscas nesta droga algum fulgor, algum destédio, alguma improvisação, que droga esta? que te faz querer assim alguém, dizes que é a mais pura das drogas, porém não será a mais lícita, a mais legal, pois A desejas tão calorosamente, que puxas fogo a tudo o que te rodeia, elevando o Todo a Nada.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

cócegas

faço-me cócegas para rir e não chorar
peço-te cócegas para nos rirmos e não chorarmos

tens dedos firmes e decididos mas frágeis
na hora de me cocegares a barriga
enches-me a barriga de cócegas
apanho uma barrigada de cócegas
não aguento e urino-me
gozas mas também tu te urinas
unimo-nos nesta urina gargalhante
(urimo-nos) afogados no riso beligerante e tresloucado

sábado, 13 de outubro de 2012

tóxico e independentemente disso

sim és tu
meu cão da morte
devoras-me os amigos
afasta-os
leva-os contigo
pois eu já nem de mim
sou amigo
tornei-me veneno
tóxico e independentemente disso
ainda há quem
goste de mim assim,
não é meu amor?

a flor mais bela

dizem-te que és a flor mais bela
tens pesadelos com isso
e nos dias seguintes gozas
gozas com as pessoas que te chamam a flor mais bela
achas cliché, sentes que te tratam como tal
sentes-te um cliché
para tais pessoas cliché é bom
para ti torna-se pesadelo

mas,

quando estas sozinha no escuro do quarto
a chorar enquanto os teus pais se odeiam
lá fora
e tu, cá dentro
enrolada nos braços do medo
teu único amigo

sentes
não queres
mas sentes
a falta daqueles que te chamam
a flor mais bela

domingo, 7 de outubro de 2012

feronímia

sentado á secretária
vestindo um robe
apenas um robe
de órgão pendente
escrevo
sonetos desnudos
de todo e qualquer sentido
púb-l-ico
sonetos despornográficos
que falam de sorores
sedentas do amor
mas que guardam seus pudores
é a feronímia do ser
que só pensa em latejar
é apelativo ao pelativo
do fruto
a banana

domingo, 23 de setembro de 2012

casa em ti

chegaste ao ponto em que já não sabes o que é sair de casa

estás tão presa a ti, agarraste-te tanto a ti

já não sabes de que cor é a luz

já não sabes sequer se a luz tem cor

tudo o que vês é escuro, apenas os teus olhos

cinzentos esbatidos se reflectem no espelho da sala do teu consciente

na cave do teu subconsciente nunca entraste, tens medo

no sotão visitas as tuas recordações, e procuras sentimentos que perdeste

eles estão lá mas não os encontras

queres chorar, mas já não sabes como se faz

jardim

ao jardim vêm
os que procuram sentimentos
perdidos em visitas passadas

aqui ficam na noite
uivando cânticos
de olhos cintilantes

para ti são palavras soltas
musicadas, banais
são como farpas
nas mãos que levas ao peito

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

moedas para o barqueiro

quem á margem chega
já o vê na espera
o barqueiro guardador de almas
ao coberto de seu manto
tecido com as mais frias
e negras noites
não permite vislumbrar
qualquer feição
apenas se lhe conhecem as mãos
antigas e possantes
que seguram o velho remo
maior que a própria barca
de proa iluminada pela candeia
sejam bem finados vindos
contudo que tragam a moeda
da travessia moribunda
pobres daqueles pobres
que sem moeda
perambulam condenados
cem vazios anos
as apinhadas margens
e os gritos gemidos
dos defuntos doridos

são almas
almas para o barqueiro

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

cabeça de gaivota

sento-me, e aprecio no ar um corpo que voa, ondulante
apenas um corpo, porque, no lugar da cabeça uma gaivota
sim, daqui de onde vejo a cabeça tem a forma de gaivota
de asas bem abertas, patas fundidas com o pescoço do corpo
não grasna, muito menos fala, apenas se afasta rapidamente
apenas mais um de mente livre, cortando o vento em busca de algo

segunda-feira, 23 de julho de 2012

cova quente

é verão
e acendi a fogueira
onde repouso diante
ela, pálida a meu lado

cavei uma cova
geminada nas suas medidas
oitenta e seis
sessenta
oitenta e seis

ela, pálida mas aquecida
pela fogueira de verão

no espeto?
não, teu destino é ali
naquela cova
tem as tuas medidas
é a tua cara!

bebo-lhe mais um trago
desta bebida amarga
rotulada "ilusão"

sábado, 21 de julho de 2012

senhor nevoeiro

perdido
e por todos abandonado
calcorreia as serras
ao descer ao sopé de mais uma
vira-se para a contemplar
uma última vez
e vê
como uma mão que envolve
o alto em forma de concha

o senhor nevoeiro

descendo a serra
no seu encalço
até ao seu encontro

o errante
de hambres farto
tira-lhe o partido
e
cortando um naco
sacia sua fome
com um bife de nevoeiro
mais cru que a própria solidão

domingo, 6 de maio de 2012

deito-me

deito-me e levanto-me
faço-o todos os dias
mas naquele dia não
deixei-me ficar
não me levantei
fiquei a ouvir e a sentir
a vida á minha volta
ouvir e sentir
foram os meus verbos
primeiro foram os sons
depois senti...frio
ouvi e senti
o pulsar da vida
do quarto
da casa
apercebo-me que
oiço e sinto
o que está lá fora também
a casa
começo a ser a casa
agora faço isto
todos os dias
nunca mais me levantei
já perdi a conta
aos dias que aqui estou
a ouvir a sentir
a casa
a ser a casa
sinto que deambulo
pela casa...
como fantasma?
talvez
agora sou a casa
a casa que viu
meu corpo deitar
e não mais levantar
não sei o que sou
mas sei o que fui

lá do alto vê-se melhor

no alto da alta escada
vê-se melhor

bem lá no alto
onde na verdade
podemos tocar nas nuvens
tomar-lhes o gosto
saboreá-las até
serão mesmo de algodão doce?
podemos lá viver?
sem correr o risco
de ficar-mos demasiado doces
a ponto de a pele estalar
como o melão mais doce

podemos ir?
se a doçura não fizer doer a barriga...

terça-feira, 17 de abril de 2012

o poema

posso começar?
chama-se o poema
o poema
e é sobre
um poema
que foi pensado
há muito
muito tempo atrás
antes até
do próprio tempo
antes até de este
ter sido pensado
é um poema antigo
mais antigo
do que o próprio tempo
e o tempo
é bem antigo
mais antigo do que
as coisas todas
todas as coisas do mundo
sim este poema
fala do tempo
porque o tempo
pode ser um poema
o poema
mais antigo do que
todas as coisas do mundo

quinta-feira, 5 de abril de 2012

bife

divino prato
bife suculento
regado de molho
bem cremoso
acompanhado de arroz
e batatas fumegantes

não comi
mas vi comer

quando passava
roto e com frio
e parei
o meu carro de compras enferrujado
e olhei
pela janela do restaurante
"que delícia!"
repetia o meu estômago
sem parar
ao ver o bife
ter aquela relação
íntima com o garfo
e depois o garfo
ter aquela relação
íntima com o homem
e a fome
daquele homem
a ser saciada
com aquela orgia alimentar

cofio a barba
"tenho de ir
revirar mais
um caixote..."

quarta-feira, 4 de abril de 2012

potencial anarca

oiço
"olá colega"
olho e sorrio levemente
para o tipo
da secretária ao lado
por dentro
das minhas amarras
faço-lhe cara feia
"apetece-me cuspir-te
na cara
bem na cara"

mostrar as minhas
partes traseiras
em vez de sorrisos
ao chefe
que me observa
de olhar controlador
através do vidro
entro-lhe no escritório
arranco-lhe a espinha dorsal
acerto-lhe com ela na cara

:limito-me a imaginá-lo.

a lei
a ordem
as regras

de calças em baixo
tenho um olhar traseiro
sobre elas

sou um potencial anarquista
comprimido ao meu fatinho

o meu fatinho
é mais uma camisa de forças
na realidade

aqui continuo
sentado à secretária
ou à espera na fila
subjugado por ela
a sociedade.

segunda-feira, 5 de março de 2012

casulos

casulos de memórias
velhos, tão velhos
quanto o próprio tempo
esperam ser despertados
por estímulos presentes
esperam
até não o poderem mais
de tão gordos
estes casulos nostálgicos

e eclodem!
explosivamente rejubilantes!

pintando toda a mente
até aí vazia
escura
sombria
e sem cor

como a velha casa
que esconde, velha mobília
debaixo de lençóis
lençóis de esquecimento

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

a rua é larga

encontrão daqui
pisam-me dali
sem dar conta sou levado
pela torrente de corpos
hipnotizados quiçá telecomandados
por seres que habitam
estes monstros
de ferro e betão
que me rodeiam
e que me encurralam o Ser

a rua é larga
mas torna-se estreita
quando tanta gente a frequenta

la santa compaña

qualquer dia
vêm bater à porta
nem que sexa a morte

din que
batendo três veces
com a fouce
sendo o terceiro
com mais forza
é esse o sinal

com esta sequência
xa sabemos o que esperar
e baixando a cabeza
á fila de almas
que espera
pairando lá fóra
nos xuntamos
sem querer saber
o que dali esperar

não é a hora

uma velhota
bem velhota
mãos unidas, reza
ajoelhada, reza

reza para mais
não se aproximar
a morte

mas a morte
não se detém
e cada vez
mais perto

a velhota
reza, agora
reza, aos soluços

a morte
pára, não é
a hora da
velhota, a morte
a foice não afiou

embrião

baloiça na cadeira
sem saber que no ventre
o embrião da morte carrega
pútrido

e o silêncio

apenas cortado
pelo calmante
e bastante terapêutico
silvar do vento latente